sábado, 12 de julho de 2008

Lux(úria)

Arrependeu-se, azedamente, de ter calçado os saltos agulha encarnados, os sapatos fétiche arrumados há séculos na sapateira. Doiam-lhe os pés e a aragem que se fazia sentir no terraço deixava-lhe, também, a pele arrepiada. Quem mais se poderia ter lembrado de levar sapatos agulha para o Lux, já depois de ouvir um velho e rouco Bob Dylan no passeio marítimo de Algés? Não se conseguia concentrar em mais nada senão na maldita dor de pés. Ela era assim: um pensamento de cada vez, uma sensação prima-donna que se sobrepunha a todas as outras, um sentimento em dó-maior. A pele arrepiada e os mamilos erectos por debaixo do vestido lilás denunciavam o frio que se fazia sentir na madrugada. "O brio vale mais que o frio"- dissera-lhe a avó anos a fio, os suficientes para ela se esquecer ocasionalmente de levar consigo um agasalho. A vodka tónica, a quarta, ajudava-a a aquecer-se por dentro. Sabia que teria que ser a última da noite, a que fazia fronteira entre a sobriedade e o alcoól e não queria repetir a sensação absurda de uma bebedeira non-sense. O estado ébrio fazia esquecer-se de tudo: dele, dela, das impossibilidades, das condicionantes, dos obstáculos, das improbabilidades, dos desencontros, do vazio do tempo não partilhado por uma opção incompreendida até ali. O lábio superior dormente fazia-a ter esperança que também lhe adormecessem os pés, e a maldita dor que se sobrepunha a todas as outras. A música tocava-a e ela fechava os olhos, encostada à varanda e ondulava ligeiramente o corpo, cabelos ao vento que se fazia sentir sob a lua fantástica que velava Lisboa. Ele ali tinha estado toda a noite. A ouvir Bob Dylan que nem apreciava. A rir-se com as histórias e o humor cáustico que só ela o brindava. A oferecê-la a dois amigos que, imediatamente, mesmo sem ainda se terem apercebido, se juntariam à corte de homens que via nela um carisma quase dantesco. Num ímpeto, arrancou-lhe o copo da mão. Tapou-lhe o corpo voluptuoso com o seu casaco. Colocou-a no dorso, gargalhando sob os protestos tipicamente femininos do "eu estou gorda". Sentiu-lhe os mamilos erectos sob os ombros, a aliviarem a tensão e a relaxarem com a proximidade do calor dos corpos. No carro cravou-lhe os famosos trocos para pagar o estacionamento. Inclinou o banco dela para trás. No rádio Bob Dylan cantava num tom mais afinado. Estacionou frente ao rio. Tirou-lhe os sapatos, Cinderela adormeceu, num misto de cafuné e colo, na mais profunda sensação de alívio, sob o céu mais aluado que Lisboa tinha assistido nos últimos tempos.

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