domingo, 1 de junho de 2008

Quando nasce o dia na cidade

O convite tinha surgido sem que o esperasse:"Podias vir cá a casa dar uns conselhos de decoração hoje...". Ela sentira um frio na barriga, um misto de surpresa e ansiedade: medo. Vestiu-se para ele da mesma forma como uma hora mais tarde se despiria para ele, em cima do tapete felpudo da salá áurea a contrastar com a sensação pouco clara que ambos viviam. Escorregadia- ela. "Se não pensares na realidade, a realidade não existe". Não era essa a verdade que ela vivia. Não obstante a ausência de imagens, havia marcas de outra mulher pela casa, passos invisíveis no chão, cheiro nos lençóis, objectos territoriais espalhados como que esquecidos. Embora, em boa verdade, a outra fosse ela. Havia um tempo interior para ela. Ela esperava que para ele também. E nesse tempo secreto, não partilhado, ela desejava que os relógios se encontrassem não muito longe no tempo, que era cada vez mais curto. Que os relógios segundassem em sintonia no tempo e no espaço dela, no tempo e no espaço dele, no tempo e no espaço dos outros, lá fora. Cá dentro também, mas só nessa altura haveria um dentro comum, interior, de placenta. Sentaram-se a ver as imagens deles, das suas gentes, das suas histórias que também eram, afinal, a história cruzada das suas gentes. Beijaram-se e ele excitou-se com o beijo dela, molhado e apaixonado pela sensação de suscitar nele o desejo que crescia. "It's a two way road". Indeed. Frente a frente, na mesa da cozinha ele preparou-lhe cuidadosamente um capilé com lima e ela bebeu-o com o mesmo requinte de quem bebe uma taça de champagne. Com mais prazer do que quem bebe Moet & Chandon. Ele tinha-o preparado para ela, entre confissões de pedaços de passado, tiras de um futuro anunciado, rasgos de um presente pesado. Histórias de risos entre paredes de pedra, danças alegóricas em bailes de província, cheiros de açúcar caramelizado com ferro a cobrir leite-creme. Partilharam, por fim, uma amêndoa amarga, doce de tanta paixão crescente nos olhos amendoados de ambos. Assim acreditava ela. Sabia que o queria. Queria não o imaginar com outra mulher. Queria-o disponível para ela. Queria mostrar-lhe o seu mundo. Queria-o em exclusividade. Sabia também o que não queria. Não queria envergonhar-se de existir e de gostar de o fazer feliz. Não queria ter medo de se cruzar com os vizinhos no elevador. Não o queria com medo de magoar a outra quando a outra era ela, e comecava a magoar-se. Não queria ser dele em full time e recebê-lo em part-time. As premissas tinham mudado. Era a hora. Fizeram amor de forma carnal e espiritual, uma comunhão como ela não sentia hà muito. Dele sabia muito pouco, apenas que desejava que o seu tempo viesse ao encontro do dela. E enquanto, em cima dele, engolia o seu corpo másculo, os olhos cairam no nascer do sol sobre o subúrbio cosmopolita da cidade e experimentou uma paz orgásmica, como se isso alguma vez fosse possível.